A estranha sensação de ser portador da próxima senha...

Nenhum ser humano esquece o dia em que o pai morreu. Dizem que é o momento em que nos tornamos adultos e o futuro nos é confiado como a chave de uma mansão de que somos enfim herdeiros
José Rodrigues dos Santos, O Homem de Constantinopla, 2013

Nada seria mais agradável para mim do que começar um post com palavras retiradas de um livro daquele escritor com quem mais me identifiquei e que mais me encantou em toda a minha vida.

E toda a minha vida? Hum... Falei como se a minha vida já tivesse terminado ou estivesse a terminar. Na verdade, espero que não esteja a terminar, mas agora tenho plena consciência de que um dia vai terminar. Agora? Então? Não tinha essa certeza antes? Ter, tinha... Mas era diferente... Tudo parecia muito distante, muito longínquo, quase incerto ...

Não vou falar da dor que, naturalmente, todos nós sentimos quando perdemos os nossos pais. Essa dor é um facto tão forte que seria cliché falar dela. Também é verdade que há filhos que partem desta vida antrs dos pais, mas isso é contra-naturam e não é sobre isso que este post trata. Também há pais que morrem muito novos, deixando os filhos pequenos. Tudo isso são dores terríveis, mas todas elas contra-naturam e nós esperamos sempre que a nossa vida siga a "ordem natural das coisas", como se isso nos deixasse mais descansados...

O que é estranho (será?) é que, mesmo esperando que a nossa vida siga a tal "ordem natural das coisas", quando essa ordem natural das coisas se vai tornando um facto, nasce em nós uma pesada sensação de mau estar... A sensação de estarmos num cais de embarque e sermos os primeiros da fila, como se estivessemos numa sala de espera com a senha número 80 e a pessoa com o número 79 já tivesse sido chamada...

É realmente uma sensação estranha. Os meus (estranho, agora são meus) terrenos lá da serra pouco valem. A desertificação tirou-lhes o valor. Se quisesse vendê-los de muito pouco me iriam valer, mesmo na remota hipótese de alguém os querer comprar. Mas restam ainda os caçadores, um ou outro pastor, os apicultores e uma ou outra pessoa que pretende passar com um tractor por lá e deve pedir autorização ao proprietário. Agora é comigo que vêem falar. E eu acho estranho. Como se não estivesse, nem quisesse estar, preparada para isso. Este já vai ser o terceiro ano em que a minha dia deve passar o mês de Abril a telefonar-me, lembrando-me para não deixar passar o dia 30... Se não pagar o IMI até esse dia depois "é uma carga de trabalhos"...

Acho estranho essas coisas agora serem comigo. Mas parece que , ao mesmo tempo, me sinto confortável com essa estranheza, pois que me parece que no dia em que me sentir preparada, também estarei preparada para partir...

A sensação de se estar em primeiro lugar "na ordem natural das coisas" é estranha e desconfortável. Mas se nunca lá nos encontrarmos é contra-naturam. Por isso  é chamada a ordem natural das coisas,

Comentários

  1. Olá São,

    Já percebi que comprou mobília nova para o blogue. Ainda cheira a tinta fresca. Boa! Gostei.

    ***

    Em relação ao seu texto, é um texto que começa com JRS e sei muito bem que a São o admira. Portanto uma espécie de energia positiva, só que logo de seguida fala de morte. Aí não concordo consigo quando diz:
    "A sensação de estarmos num cais de embarque e sermos os primeiros da fila". A vida já me ensinou que quando menos esperamos troca-nos as voltas. Passamos de primeiros da fila, para últimos. E vice-versa.

    Tenho alguma dificuldade em falar deste tema, porque a verdade é que não penso muito, ou mesmo nada, na morte. Na minha. Na minha não penso. Porque não me preocupa. Só não quero ficar a depender de terceiros. Agora deixar de existir não me preocupa. Sou daquelas pessoas que, se me dissessem, vais morrer daqui a um ano no entanto terás tudo o que pretenderes para que nesse espaço de tempo vivas como bem entenderes, eu pegava nas perninhas e ia viajar com alguém de quem gostasse muito e morria feliz. Encaro a morte, como encaro a vida. Com naturalidade.

    Doeu-me a morte da minha mãe, porque se me tivesse sido dada a oportunidade eu teria feito tudo para que não tivesse acontecido. Lá está, fico aflita com a morte daqueles de quem gosto porque me é difícil viver sem eles. Se eu morrer a minha aflição termina. Se forem eles a morrer começa a dor insuportável da ausência que não mais terminará.

    Beijinho e tenha uma noite :)

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    1. Mas Maria, eu não acho que o meu post tenha uma carga negativa. Porém é engraçado porque o amigo Observador teve a mesma ideia... Deve ter sido porque dei mesmo uma imagem negativa. Eu acho que uma pessoa que está com pena ou com medo de morrer, que acha que já não terá assim tanto tempo é porque gosta de viver :) ... É porque ainda acha que tem um monte de coisas para fazer e receia não ter tempo nem qualidade de vida suficientes para isso. Repare, eu tenho 45 anos... O mais provável é que já não viva tanto tempo como vivi até aqui... E mesmo podo a hipótese de que viveria, nunca seria com a qualidade de vida que tive até hoje... 90 anos cheia de saúde e genica? Hum... E tendo em conta que eu tenho um monte de livros para ler, um monte de sítios que gostava de conhecer, um monte de coisas que gostava de aprender, fico triste ao ver que o tempo já nã poderá ser muito...

      E sim, é verdade que nunca se sabe quem é o próximo da fila, mas quando começamos a ver os mais velhos a partir começamos a pensar que... Tal como dizia a minha mãe, "Quem em novo não morre, de velho não escapa"... Quando morre alguém muito novo nós dizemos "Infelizmente aconteceu... São as injustiças da vida"... Quando é mais velho já encaramos com naturalidade...

      E depois não é só a ideia de morte... É estranho ver os apicultores, os caçadores, as pessoas que têm tratores lá na serra me virem perguntar A MIM se pdoem pôr colmeias, se podem caçar , se podem passar... LOOL... A grande maioria desses terrenos eu não faço a mínima ideia de onde são sequer. Acho curioso...

      Um abraço :)

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  2. São
    Todos nós temos uma senha ... sem número.
    Ninguém sabe e ainda bem, digo eu, 'quem está a seguir'.
    Não há "ordem natural das coisas".
    Existe, acho inevitável, uma sensação demasiado estranha quando se perde alguém que amamos.

    Não me alongo. O tema não é 'apetecível'.

    Cumprimentos

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    1. Tal como eu já disse à Maria, a minha mãe costumava dizer que "Quem em novo não morre, de valho não escapa"... É verdade que nunca se sabe quem é o próximo, mas ir envelhecendo dá-me aquela sensação de tempo a esgotar-se ... Ou seja, se não fomos antes, estamos mais próximos de ir do que estávamos... Não acho que o tópico fosse negativo, porque uma pessoa que tem medo de morrer é porque gosta de viver :) . É porque tem medo de não ter tempo para fazer todas as coisas que gostava de fazer :)

      Um abraço :)

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    2. "É porque tem medo de não ter tempo para fazer todas as coisas que gostava de fazer :)"

      Ter medo é ser negativo, São.
      A evitar, ao máximo.

      Um abraço.

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