A violência silenciosa e subtil, que, afinal, é tão perigosa...

Sempre que o assunto é violência doméstica, surge invariavelmente uma grande mulher de armas, qual treinador de bancada, que afirma ,alto e bom som, e sem gaguejar nem pestanejar, que jamais aguentaria tal coisa, que com ela não, que se fosse com ela, a primeira vez que o marido lhe batesse, levaria imediatamente o troco, que se lhe desse uma bofetada, levaria duas imediatamente.

Como explicar a estas grandes mulheres que as coisas não começam assim? Como fazer entender estas tão valentes senhoras que num casamento que corre bem, em que há respeito mútuo, o marido não chega um dia de repente a casa e não dá uma bofetada na mulher? E como fazer acreditar tão ditosas damas que um dia todas aquelas mulheres que hoje são vítimas falaram da mesma maneira?

Lamento desapontar quem achava que assim era. Mas não. As coisas não começam assim. Um marido carinhoso e respeitador não chega um dia a casa e não diz "Olha, mulher, hoje ,de repente, apeteceu-me dar-te uma chapada, toma lá!" . Aliás, até poderá acontecer um caso ou outro, não de forma tão literal do "apeteceu-me dar-te uma chapada", mas de acontecer uma situação de violência física por uma discussão mínima. Esses casos não são graves. Ou pelo menos não são muito graves. Não são os mais graves. O mais provável é que , a acontecerem, a reacção  da mulher seja realmente a que tanto apregoam aquelas referidas senhoras: " Ai, deste-me uma chapada? Pois agora levas duas!" . E então depois das duas uma: ou o marido muda, ou o casamento acaba.

Mas infelizmente, repito, as coisas não começam de forma tão nítida e concreta. Regra geral, no dia em que acontece a primeira bofetada, a mulher já não tem forças para dar seja que troco for, a não ser um submisso e humilde pedido de desculpas.

Sim, leram bem. Porque no dia em que acontece a primeira bofetada a mulher já está devidamente formatada no sentido de a aceitar como um castigo ao seu "mau comportamento". E acredita, interiormente, que se o marido lhe bateu foi porque ela mereceu... E a partir daí, dando continuidade a um processo de destruição que começou subtil e silenciosamente muito tempo antes, irá tentar fazer tudo o que estiver ao seu alcance para que o marido não seja obrigado a voltar a bater-lhe.

Há frequentemente campanhas de prevenção com vista a advertir para os primeiros sinais. Já devia ser tempo das referidas treinadores de bancada perceberem que talvez não seja assim tão simples como elas julgam.

Vejamos ,por exemplo, está situação que pode traduzir um dos primeiros sinais: um homem sente-se mal, tem dores de estômago, azia. A mulher custa-lhe ver assim o homem que ama e pergunta se não poderá ser devido ao facto do jantar (que ela preparou com tanto gosto) estar um pouco salgado, ou demasiado gorduroso. Ele diz que é possível que sim, que seja por isso e pede para ela ter mais cuidado na próxima vez. A mulher sente-se tão triste por ser a culpada do marido se sentir adoentado que a sua vulnerabilidade aumenta... E a partir daí fica menos imune a novos e cada vez mais sérios ataques.

Se agora um homem não pode dizer à mulher que prefere a comida com menos sal, ou com menos gordura, ou menos picante? Claro que pode! Por isso mesmo é que os primeiros sinais são subtis e podem nem sempre ser indício de um comportamento agressivo e violento.

O que quero dizer é que , regra geral, a primeira bofetada acontece depois de anos de uma violência mais dissimulada. Provavelmente, por altura dessa primeira bofetada a mulher já passou anos a ouvir frases como "Não vales nada!" , "Não serves para nada!" , "Não sabes fazer nada!"...

Mas atenção que tais insultos também não começam de repente, de um momento para o outro. Tudo é muito gradual e subtil. Tornando-se mais evidente à medida que a vítima vai perdendo as forças interiores. À medida que para ela vai deixando de ser evidente.

Quando acontecem as situações de violência física, também elas cada vez mais graves, a mulher já está formatada, condicionada no sentido de que merece essa pancada, porque se trata de uma punição, um castigo por não ser a mulher que o seu marido quer, que o seu marido precisa, que o seu marido merece.

É normal, inclusive, ouvir mulheres dizer " Se eu tivesse feito tudo como ele me dizia , se eu eu tivesse seguido os conselhos dele..." E porquê: porque é habitual o marido agressor se colocar, já nesse estádio mais avançado, no papel da vítima, o pobre-coitado que está naquela situação , ao ponto, coitado, de ser forçado a bater na mulher, porque ela é realmente um "trapo que não vale a ponta de um corno". E é nesse momento que pode acontecer o pior... Ou a mulher conseguir ainda uma réstia de força que lhe permita pensar: " Basta! Por mais que eu seja um trapo que não vale a ponta de um corno, não sou obrigada a aguentar isto! "

Deixo aqui os meus parabéns a todas as mulheres que, mesmo com a auto-estima a zero, mesmo convencidas de que são um trapo que nada vale, conseguem ainda dizer "Basta!" ... Mas deixo também a minha homenagem sentida, e a minha compreensão e consideração, a todas aquelas para quem, por algum motivo, já é tarde demais.

Sugiro ainda às tais senhoras, grandes treinadoras de bancada, que pensem bem antes de se pronunciarem sobre uma situação que, felizmente, não conhecem.

Um 2016 da melhor forma possível a todos os que tiveram a paciência de ler este post. Muito obrigada :)

Comentários

  1. Grande texto, São.
    Espero que as mulheres tirem dele grandes lições :)

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  2. Olá São,

    Li este seu texto atentamente e digo-lhe que me custou a ler. Passo a explicar porquê.

    Tudo isto que a São descreveu terá a ver, muito provavelmente, com alguém que conhece muito de perto, (o texto está muito vivo, digamos assim) o problema aqui é que nem todas as mulheres reagem à mesma situação da mesma forma. Umas batem com a porta à primeira bofetada, outras desculpam, ficam e, acabam por levar duas... mil. Há as que não perdoam e as que perdoam sempre. Não se trata, arrisco dizer, mas não tenho bem a certeza, de "treinador de bancada", trata-se, talvez, de ver a situação de variados ângulos...

    Terá a ver com fragilidades, vulnerabilidades, condições financeiras, zero de auto-estima e por aí fora. Talvez uma mulher que tenha condições financeiras de sair de uma situação de violência doméstica, o consiga fazer mais facilmente do que outra que é dependente financeiramente do marido. O estar dependente de um marido financeiramente falando, é capaz de a fazer entrar num pesadelo sem fim, são os tais sentimentos de culpa, a submissão, é todo uma teia que pode acabar muito mal.

    E, lá está, também tem a ver com o tipo de homem com quem se casa ou se vive. Nalguns casos ser selectiva pode fazer a diferença. Podemos não acertar, é um facto, no entanto nalgumas coisas existem diferenças de homem para homem que fazem uma grande diferença. Eu, por exemplo, nunca precisei de cozinhar para um homem, não o conseguiria fazer, ou sabemos cozinhar os dois e quem chega a casa primeiro faz a comida, ou seria muito complicado. Não conseguiria lidar com a situação de ter que ser "criada" de um homem. Tal como ele também não tem que ser meu criado. O respeito também pode começar por aí. Não sei...

    Também acho que muitas mulheres que podem à primeira vista parecer uma "treinadora de bancada", quem sabe não estão a esconder factos da sua vida que preferem não revelar ao mundo. Também existem muitas mulheres nessa situação. Penso eu.

    De qualquer forma acho muito triste que em pleno séc.XXI ainda existam mulheres que sofrem e morrem nas mãos de um homem. Muito ainda existe por fazer.

    Deixo-lhe um beijinho :)

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    Respostas
    1. A minha resposta apareceu como comentário de primeira linha... Por lapso! Bolas! Nem a minha casa sei arrumar... Devia de ter razão o fulano

      :D

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  3. Olá, Maria :)
    Já percebi que o meu post não atingiu o objectivo. O comentário da Maria é semelhante aos que tive no Facebook quando publiquei lá o texto. De modo que, se a maioria das pessoas não entendeu, a culpa não é delas, mas sim, minha, que não fui suficientemente clara na ideia que pretendia transmitir.

    Essas mulheres que batem com a porta à primeira bofetada, provavelmente, ou foram muito resistentes, ou essa primeira bofetada foi efectivamente a primeira bofetada, que é como quem diz a primeira atitude violenta. Nesse patamar, quando a mulher ainda não perdeu a sua identidade, é fácil reagir com firmeza à primeira bofetada.

    Mas acontece que o que se passa na maioria dos casos e que antes dessa primeira bofetada já houve muita violência subtil, camuflada, silenciosa, violência essa que condicionou precisamente a mulher no sentido de aceitar com resignação essa primeira bofetada.

    Foi essa a ideia que pretendi transmitir.

    E não, não estou a falar de ninguém muito próximo. A Maria sabe perfeitamente que estou a falar em primeiro lugar de mim própria, mas também de 80% das mulheres com quem me cruzeiro nos últimos meses. Por isso é que generalizado tanto. Porque percebi que no mundo, embora possa não existir casos iguais, a maioria dos casos com desfecho semelhante, tiveram um início e uma evolução semelhante...

    Isso da dependência económica ou não ... Não é bem assim... Acho que não é muito por aí... Mas daria mais pano para mangas...

    Quanto à questão de "saber escolher" ... Eles não vêm com rótulo :D

    Obrigada pelo comentário :)

    Abraço e um excedente 2016

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    Respostas
    1. Uma coisa que eu também senti é que ainda há muita falta de informação no que respeita a direitos e deveres das vítimas, bem como alguma falta de formação por parte das autoridades competentes... Mas isso, mais uma vez, daria pano para mangas...

      Bom ano a todos :)

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